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A mostrar mensagens de janeiro, 2021

[ Domingos baços, in O Livro das Caras ]

 A casa cheira a sopa e as janelas com aquele baço onde apetece escrever um palavrão, precedido de hastag. A banda sonora é "sad classic" e um adágio para cordas pode ser tão triste que sobe um rio no olhar. E não tenho dor física mas pergunto a quem a tem e pudesse eu fazer alguma coisa... A casa cheira a sopa e penso no Senhor Francisco, ainda há pouco, de jornal debaixo do braço, queixoso do tempo e das notícias, mas de olhos mais vivos que os meus. Entra no elevador e diz " não se importa, pois não? Afinal, estamos de máscara."

[ redomas ]

 Às vezes não sei em que dia da semana estou, tento estender os dias, sair nas horas dos morcegos, mas tudo nos contraria. Ou acabo a correr com lume nos pés e oiço do polícia "isso não é com a gente".  Agente ou a gente?  Às vezes eles sobem a rua a uma velocidade louca, aquele uivo a cortar a manhã ou a tarde...Nunca lhe fico indiferente porque quem vem de uma aldeia, quando uma ambulânica se anuncia nunca traz de arrasto a indiferença. Uma, cinquenta, trezentas vezes... Às vezes os dias são a galope e as noites a trote. Às vezes o cavalo não pára, as luzes azuis enchem a sala, e acabo a pensar que as quatro paredes farão de mim esse cavalo no jardim,  em "Pára-me de repente o pensamento".

as obras à janela, desde Março

 Não chove, não faz frio, Não há dias quentes, ou ventosos, Não há mortos nem feridos, nem assim-assim, Não há números, nem regras, nem surtos, para os homens que serpenteiam os futuros telhados do aldeamento de luxo Saem de véspera, de mãos gretadas nos bolsos, Fortes e frágeis. Não há primeira vaga, segunda, terceira, Há domingos, apenas. 

a cada março de janeiro, janelas pouco isoladas

 O silêncio da rua desta manhã  Ainda tem os autocarros velhos da Carris, São, por isso, ainda mais brutos. Fazem a sua ronda mais solitária,  mais breve Mas o seu eco é maior. Não é tão bonito como quando ele passa E canta gitano. Não sei de onde vem mas vai no caminho de casa, De voz grave e canto alado. Quebra o silêncio da rua, Quando os autocarros dormem das suas rotas, até cada nova manhã de março. 

[ uma varanda às cinco ]

  Não sei se me vê a mim Eu sim, vejo-o, em polo vermelho a fumar na varanda. Hoje é o homem inteiro, com uma das mãos no bolso porque faz frio, Chega mesmo a sapatear o chão da varanda. Há dias, era o homem suspenso no fio do estendal, Rodou, rodopiou ao saber da brisa fresca... No primeiro instante assustei-me, mas depois percebi,  Era o fato de surf a secar. O homem suspenso não fumava, mas creio que também tinha frio e por isso rodopiava.

#29.12.2020

 As luzes azuis, Com o mesmo temor quando se ouve uma sirene,  No vazio da cidade onde ninguém sabe de ninguém  Os carros tombam como comboios de brincar Abrandamos das pressas que agarramos de olhar carregado Ela está bonita, quase cheia No alto do Castro.  As luzes azuis, Já não a vêem.