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A mostrar mensagens de abril, 2019

Numa rua às cinco da tarde

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Eu quis fotografar aquilo que eu dizia que já vai sendo raro - um posto de correio de rua. E acabei por fotografar a ponta de um iceberg de algo não tão raro mas que nunca nos aparece assim, tão à vista. Ela estava ali, dormitando no banco do jardim e ele, noutro banco atrás, de cara coberta com um farrapo preto. Tão negro como a sua alma no primeiro momento que se terá rendido ao material que tinha disposto no banco. Tabaco, molhinhos de substâncias embrulhados em mortalhas, o papel prata, o isqueiro e mais coisas que o meu olhar desviado não viu. Outros dois homens em pé, no murmúrio sinistro das cinco da tarde. Numa rua principal, onde descansam à soleira os homens do talho mais atrás, conversam pessoas na entrada da igreja evangélica, redentora ou algo parecido, o lixo brota das esquinas, os pombos comem dele e às tantas parece que estamos noutra dimensão. Quase nos esquecemos dela quando, depois da câmara municipal, descemos a escadinhas e vamos dar à ladeira da Casa da Cerca e a

Todos os ventos #3

Sobre o sonho cantava ela, também. "Dream on Girl", de um disco de 2008 que ainda guardo.  Mas naquela noite, vésperas de Natal, chegada a casa depois do jantar da empresa ouvi essa música repetidamente. Só me lembro disso. E do cheiro forte a xixi de gato que nunca saiu daquela casa.  Chão ocre, a lareira com as cinzas de todo os sempre, aquela alcatifa gasta do quarto. Uma janela ampla na sala. E agora mesmo não saberia conduzir até essa casa. Nem tenho memória da zona da cidade. Também as suas palavras ou a forma como se despediu de mim se impregnaram. Mas ficaram lá. No sofá quando me deitei e perguntei o que era aquilo que estava prestes a iniciar. As mesmas palavras que geravam aquela ânsia pelo amanhã, um certo tremor, aquele formigueiro que acelera tudo. E isto seria muito antes de tudo. Mas foi disso que me lembrei quando ela ontem pisou o palco para cantar a balada com o seu nome. Fui até essa noite quando nos despedimos, nesse lugar onde transbordava o rio e v

Todos os ventos #2

Não me recordo quando mo ofereceu. Creio que já depois de todas as histórias que fui ouvindo, em pé, com a devida distância de uma secretária com papéis, protótipos e outros objectos, ou antes mesmo de rebolarmos numa praia da Figueira em beijos longos e salgados. Ter presente essa dedicatória ajudaria a perceber. O livro está novo. Uma outra marca, de uma impressão digital suja, que marcou poucas páginas. Duvido que alguém o tenha lido, disse à Ana. Pergunto-lhe como era o homem que o levou ao centro comercial. Estaria ele ligado ao mar?  Estávamos na sala redonda do restaurante vegetariano e ainda tinha o picante dos pepinos à moda asiática e do Pad Thai na boca. Contei-lhes o simples de uma história maior que fica cada vez mais difusa, já sem precisão de datas, de acontecimentos. De mágoas, sobretudo. Uma história proibida e, a dada altura, um erro de percurso para ambos. Assim o queríamos acreditar, quando já não podemos salvar nada ou não temos energia para tal. Mas, no fim

Todos os ventos #1

Pareceu-me simpático, afável e despachado, quando liguei. E não lhe notei aquela estranheza na voz que, certamente, fazemos passar sempre que ouvimos do outro lado uma voz que não reconhecemos. Expliquei-lhe que não iria eu buscar o livro mas dei-lhe todas as indicações para que a transacção decorra como o esperado. (ainda não foi, será hoje, pelas dezoito horas em frente ao Zeno). Encontrei o livro no website onde tudo se compra e vende. E estava ali. O meu último reduto de uma história que nem eu sei falar sobre ela. Custa oito euros e terá, se não lhe arrancaram páginas, a mesma história que li dez anos antes. E é o início de uma outra história. Ou várias, se quisermos desmultiplicar a importância das vivências, das memórias, desse lastro que uns dias é tanta coisa e noutros coisa nenhuma. Um livro que é aquilo que ficou para trás. Com uma dedicatória esperançosa na folha seguinte à capa, com aquela caligrafia fininha e tombada. Elegante, diria. E assinado com o seu nome verdad

Maior a dor, mais nos pesa o tempo

Eu estava na sala de espera pensando naquilo que iria dizer volvidos seis anos de ausência e um tratamento interrompido.  Parecia-me muito tempo, tanto como o atraso que a consulta já levava.  Foi quando vi a mensagem da tragédia que consumia a catedral em França.  A mesma que visitara, precisamente, seis anos antes, tendo esperado mais de uma hora para conseguir admirá-la.  Segundo as notícias sessenta minutos bastaram para destruir dois séculos de história.  Não tanto durou a minha dor física mas muito mais será a dor do país que vê ruir parte da sua identidade. Durante quanto tempo?

As redes sociais

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[Porto, 13.04.2019 ] O mundo das redes sociais parou e eu lembrei-me deles, ontem. Carruagem vinte e dois e lugar de corredor. Ele ia do lado da janela. Alto, cabelo muito grisalho, argola fininha na orelha e aquela voz rouca de gringo ou daqueles que nos interpelam na rua, já de madrugada, para pedir tabaco. Ele barafustava consigo próprio, suspirava e lamentava as sucessivas perdas de rede. Tanto que desistiu de tentar falar com ela pelo telefone e passou a escrever pelo messenger, primeiro, e depois pelo whatsapp. E eu ia de livro aberto mas distraí-me com a conversa e depois olhei bem pelo canto do olho. Chamava-se Bé. Ou ele tratava-a assim. "Amo-te muito, Bé" - disse-lhe ainda antes do comboio partir.  E teve mensagens demoradas, escritas e apagadas que podiam levar entre Caxarias e o Entroncamento a ser enviadas. E corações, muitos corações.  A distância (Porto e Lisboa, aparentemente) o amor deles, a despedida amarga, o escrutínio social pelo qu

Teledisco

Desci a Avenida e ali, no cruzamento com a Rua Barata Salgueiro eu desejei todas as chuvas de Março para escorregar na calçada, todos os semáforos em vermelho, que o céu cerrasse enfim a noite e ele ficasse ali. Com o saco do fato dobrado ao meio, a impaciência a desfiar minutos no modo como olhava o relógio, passava a mão pelo cabelo e me olhava do lado oposto da rua. Perdão. Não a mim.  Ao bulício de uma rua inteira num fim de tarde.  Mas se eu pudesse ser, era o ponto zero dessa rua, batia-lhe no ombro ao cruzar a passadeira ou ficava ali a fumar. A ser personagem de um teledisco.

#31.03.2019 - Estrela do mar

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Jorge Palma no Cine-Teatro Garrett - 30.03.219 Quando me fartava dos textos de psicologia gravados em mini disc, ouvia o disco dele, "No tempo dos Assassinos", ao vivo no teatro Villaret. É o meu disco afectivo. Não sei praticamente nada de psicologia, mas sei quase todas as letras desse disco.  Um dia, e sem nunca me ter interessado por política, meti-me no carro e fui a um desses momentos de campanha eleitoral onde o Jorge Palma ia dar um concerto gratuito. Ouvi-o mais renovado, depois de algum tempo sem o ver em palco,  com o Vicente Palma e o Gabriel Gomes.  Vim de lá, ainda mais convicta que a política nunca nos valerá, verdadeiramente, mas a música sempre nos pode salvar de algo. Ontem, no Cine-Teatro Garrett, enquanto ouvia a "estrela do mar" lembrei-me que passaram dez anos sobre esse concerto.  E dez ou "mil anos são poucos ou nada para a estrela do mar".