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A mostrar mensagens de março, 2019

Não lhe sei o nome

Não lhe sei o nome, nem a idade. Chamou-me quando eu descia os poucos degraus junto à paragem do autocarro para a entrada do hipermercado. - Oh menina, oh menina. Ela tentava descer as escadas, apoiada no corrimão metálico. Nem a vi, ali curvada. Dei-lhe o meu braço para se apoiar e fui devagarinho, tentando fazer-me mais pequena para que ela se sentisse confortável. Gorro na cabeça a tapar os cabelos ralos brancos, sandálias rotas, falta de higiene à vista e eu sem conseguir perceber aquilo que ela filtrara como importante para me dizer em cinco minutos de trajecto que foi o que demorámos até chegar ao balcão da pastelaria. Vive com o marido acamado, vai ali à pastelaria comer uma sopa e quando lhe pergunto porque não usa bengala diz-me que se atrapalha com os sacos. Não tem uma vista mas acredito que mesmo que perdesse a outra seria uma mulher independente. Diz-me que é de Viseu e eu digo-lhe que conheço bem. Então chegámos ao balcão e ela pergunta se eu quero beber

#23.03.2019 - a aldeia no parque

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Eu segurava o peito, a cabeça ou tudo. Tinha descido a rua a pensar que a preguiça mói mas dá-me tempo, também. Foi quando os vi, a fechar o quadro. Esse quadro do parque que é a minha aldeia. Onde já reconheço as mesmas famílias, o casal de idosos que abraça árvores, o rapaz e a rapariga que sempre se cumprimentam com um abraço e vão tocar guitarra para a sombra, aquela miúda que está sempre impecávelmente vestida e maquilhada e o namorado que a olha quase sem vontade de a b eijar. E agora eles. Um de fato escuro, gravata em tom lilás, o outro de boina, gravata riscada e camisa clara pareciam saídos de uma praça de pelourinho e coreto. Mas estavam ali, à entrada do parque da cidade grande, ao sol, e com aquele expositor que nos convida a ser testemunhas. Eu baixei-me para apertar o atacador e um deles sorriu e ia dizer algo que fechei com um bom dia. Quase sem conseguir falar digo-lhes que nem Deus, nem um personal trainer. Já não vai lá de modo nenhum! O expositor convid

Ao terceiro toque

Estacionei o carro do lado oposto ao habitual e desci a rua em frente à escola. Soou o toque da campainha e voltei àquele recinto nas manhãs em que, quase nunca, havia um terceiro toque sem o abrir da porta, seguido de um "bom dia". Lembro-me, sobretudo, das manhãs, desse lado do bloco de salas quando ainda não batia o sol. De entrar tudo aos encontrões, de arrastarmos as cadeiras, de escrevermos o sumário nos cadernos e dali transformarmos responsabilidade em conhecimento.  Ah, mas sempre que se gritava "furo", os planos de ocupar noventa minutos eram decididos rapidamente, desde fugas para o rio, comprar gomas no cafézinho junto ao campo de futebol do qual já não me recordo o nome ou simplesmente ir para os bancos corridos do pavilhão principal. E em tudo o que o tempo se encarregou de dissolver, um toque de campainha e aquele gralhar do recreio será o que nos resgata numa manhã, também ela de mochila às costas, mais de vinte anos depois. 

A luz em palavras

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O feixe de luz.  Poderia ser o que me lembra esta foto, se a tivesse que legendar com aquele rasgo de sol, mas depois penso na palavra feixe e vem-me à memória dias de Outono. Ou o início dele.  Vinham os homens podar as vinhas e a tarefa que me cabia era fazer pequenos montinhos com as videiras cortadas. Eram os feixes que ficavam organizados debaixo das latadas, para depois os retirar dali. E foi assim durante anos, ou os suficientes para que a palavra "feixe" ganhe esta dimensão de exclusividade para isto. O sabre de luz.  [...]

Na rua da solidão

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[ Vista da Prainha em Angra do Heroísmo - 03.03.2019]   Eu ia a subir a rua que cruza com a dos Canos Verdes quando o vi a cambalear do passeio para a parede. Depreendi, nessa urgência de julgar para o pior, que estivera num café ou em alguma tasca até ficar naquele estado e vi-lhe duas vidas e memórias menos boas.  Foi quando virei na rua, em direcção à prainha, que ele tombou. Uma rapariga entrava num carro e ainda lhe lancei um olhar a tentar pedir ajuda. Corri para o homem, tentei levantá-lo, perguntei se estava bem e daquilo que me respondeu não entendi uma palavra. Teria cerca de setenta anos, talvez nem tanto, vestia bem, bigode aparado, tinha dois maços de Winston no bolso do casaco do lado que o agarrei, tinha um anel com uma pedra vermelha e um vazio imenso no olhar.  A rapariga fez-lhe perguntas e percebeu que vivia numa pensão mais abaixo. Enquanto descíamos a rua desciam-lhe as lágrimas também, e ele murmurou que estava sozinho e sem família. E