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A mostrar mensagens de novembro, 2019

T(r)emer

Quando eu tocava clarinete e tinha "audições-de-fazer-por-casa" tremia muito das mãos. Os dedos gelavam e não tinham a destreza necessária para o que as  semicolcheias exigiam. Nesses momentos, pensava sempre no que poderia fazer para controlar os nervos. Nunca resolvi esse problema (entre outros) e poderia reunir com todos os gurus do tema que estaria exactamente na mesma.  O tremer das mãos resultava apenas numa prestação menos boa e no ego ferido, obviamente. - Não movimente o olho - dizia o médico enquanto virava a pálpebra do avesso.  - O Doutor nunca treme das mãos? - perguntei. - (risos)  Então eu fiquei a pensar em todas as profissões do mundo em que o tremer das mãos, em nervoso, pode ser fatal. E não encontrei outra mais importante do que a de um cirurgião. Em que um centésimo de milímetro faz toda a diferença. Ou nenhuma, até.  Ali, se ele falhar, a cortina fecha-se devagarinho sem direito a aplauso.

A frase

Eu estava na página 250 e lia assim: "Sexo, drogas e rock'n'roll", disse Laura quando o carro cruzou os portões para o interior da escola". Percebi que alguém tinha vindo do lado da livraria e ficou, ali, algum tempo imóvel, a olhar para a parede em frente. Depois foi ao balcão e perguntou às meninas alguma coisa que não entendi. Elas leram a frase que está escrita naquela parede, em português. E uma delas disse que não sabia como explicar-lhe. Ele era um rapaz alto, cara de miúdo, blusão desportivo, calças clássicas e sapatilhas. Então elas usaram o programa de tradução com voz, mas não consegui perceber o que o aparelho terá feito com aquela frase.  O rapaz, agora do lado interior do balcão a olhar para a tradução no computador, sorria e, ora olhava para o ecrã, ora para a parede. - don't worry - rematou com um sorriso e voltou em direcção à livraria. E então uma delas, olhou para mim e como que justificando algum embaraço, disse que

Albertino, o padre rock star

O Albertino apanha-me nas torres, de mão a segurar o olho esquerdo, numa versão de fazer inveja ao próprio Camões. - espero que não seja grave - diz-me.  Depois fala do tempo, da aplicação que nos guia por entre ruas que desconheço, das senhoras que às vezes se irritam. Irritam-se muito, cada vez mais.  O Albertino tem os cabelos brancos penteados eximiamente. É um homem de sorriso fácil e rugas marcadas. Veste um blusão de pele que faz dele o meu rock star das quatro da tarde. É o Albertino que eu gostaria de encontrar, aos sessenta, numa dancetaria daquelas que ainda existem. O Albertino sabe dançar, não tenho qualquer dúvida.  Diz-me que, dentro do carro, é motorista, conselheiro, psicólogo, juíz e padre.  - padre? - pergunto eu.  - sim, sim, que isto às vezes é um confessionário!  Chegamos. O vento força a porta, eu agradeço e saio, não sem antes dizer: - sabe, Albertino, às vezes também me irrito. Demasiadas vezes. Cada vez mais.

Variações (s)em dó maior

Pela manhã, acordamos sobre o efeito de um documentário "Netfixe" visto na noite anterior e somos "pro-qualquer-coisa-saudável-sem-carne-100%ambiente-cool-movimento-inclusivo-cultura e arte", vamos trabalhar para organizações VUCA, mas sem poder ir a pé ou de transportes; depois, na cantina até tem uma picanha mal passada, logo agora que também tínhamos aderido às manifestações contra a desflorestação da Amazónia e já partilhámos mais de uma dezena de frases idiotas do presidente que justifica as suas accões em discursos para nações que não têm nada de unidas; à tarde já nos enviaram um artigo sobre a manipulação de informação, ficamos meio perdidos sem saber se as eleições são manipuladas, se somos de direita na razão e da esquerda no coração ou vice-versa, se a picanha faz ou não faz mal. Então chegamos à noite e vamos ver outro documentário que possa esclarecer todos os meandros cinzentos deste maravilhoso mundo do ser ou não ser algo, do estar e não estar inf

Tascas (contemporâneas)

Íamos às tascas, onde sabíamos que só "passavam a loiça por água", onde o bacalhau pingava azeite, o vinho pintava feito carrascão numa tela de artista, o pão era broa de milho de base rija e a fugir ao queimado. íamos, aliás, sempre fomos às tascas e ainda vamos como se fosse uma oração. E cresci a comer com esse critério do muito e do farto. Mas nem por isso, deixo de ter admiração e curiosidade por toda a reinvenção que se faz à comida e aos sabores. E é por isso que quando entro num restaurante de cozinha contemporânea de autor há duas coisas que eu confirmo: se tenho o VISA  a funcionar, obviamente, e se a "viagem" é com a mesma intensidade daquela que sinto quando vou às tascas. Se não for, não vale a pena.