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A mostrar mensagens de julho, 2019

Domingo, a sul

São quatro com roupas de trabalho com pinceladas de várias cores. Olhares rudes, mãos fortes e numa lástima, que se conforta cigarro a cigarro. Bebem cerveja pela garrafa, riem e contam histórias de um outro dia de trabalho. Ao lado, as moreias rodopiam com o vento e brilham com o sol da tarde. Esse vento norte que castiga esta paisagem a sul. Como o trabalho de domingo destes quatro homens algarvios.

Louise

Corpo moreno e magro em vestidos soltos que lhe dão um ar desprendido. Está mais próxima dos cinquenta mas isso não lhe fura planos porque não os tem. "Where are you going? “ - pergunta-me, enquanto põe um colar, várias pulseiras e ajeita os cabelos compridos e mais loiros que os do presidente do seu país. Esteve em Espanha mais de um ano e agora sabe que o tempo e as burocracias lhe apressam um regresso ao Texas. Queixa-se dessa vertigem do tempo e da falta de velocidade da Internet, enquanto cumpre os afazeres de uma manhã e me dá dicas num abraço de despedida. Eu não ouvi nada porque me fixei no seu pé direito e a imaginar o que estará por detrás daquela "marca de guerra" tão grande. Louise, vou chamar-lhe assim. Tem a luz do cinema e como me doem muito os pés,  lembrei-me dela, agora que cheguei à Carrapateira.

Oh marinheiro,

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Nasceu em 1934, nessa Vila pobre que teve um porto de amarração de navios e ficou conhecida pelas suas batalhas islâmicas onde rolaram cabeças e se enterraram corpos na mesma fundura que se encontraram moedas de prata. Na Casa do Povo, ouviu Fernando Pessa comentar a guerra, que viria a trazer ali senhores alemães para velar os aviadores abatidos nas redondezas. Seria por essa altura que os pequenos estalidos na rádio lhe despertaram o interesse por algo que ainda não sabia, mas viria a ser a sua vida. Os barcos comunicavam entre si, em ondas cortadas - o Morse, assim o disse. Trabalhou no comércio e em todos os negócios do seu primeiro e único patrão. Passou pela indústria de peixe da Arrifana, aventurou-se com os pescadores mas com vinte anos rumou a Lisboa, de onde viria a sair para missões, desde Melbourne, Timor, todas as ex-colónias e toda a Europa. Mas a respeito de viagens, os seus olhos vi-os mais verdes quando me falou de Paris e do Porto.  Esta é a história (abreviada)

Avenida

Fiz aquela avenida tantas vezes, a pedalar ou mesmo a pé, em diferentes alturas do ano mas sempre me lembrou o verão. Aquela é uma estrada de veraneio. As pequenas vivendas com andorinhas de loiça cravadas nas paredes, os pinheiros mansos de fartas raízes, aquele cheiro do carris do elétrico. Não sei se é porque sabemos que a seguir vem a estrada que nos leva ao mar ou se aquele é o resgatar de outros lugares de sal no corpo. Hoje via-a ainda mais veranil, quando avistei aquele rapaz a caminhar pelo centro da linha do elétrico, num vagar de cena de filme. Cabelos soltos, negros e ondulados, tshirt enrolada na mochila e o corpo moreno de ser.  Os olhos postos no  ukulele e ele à procura dos acordes de alguma canção que o consome. Por momentos, quis tudo aquilo numa tela gigante, que saíssem de cena aquela fila de carros, que se desligasse a música que toca no rádio, que tudo fosse ele a caminhar descalço, com aquele olhar sereno. E o som do ukulele não combina com nada disto e trocar

A estrada dos milagres

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Daqui vi o futuro chegar, de velas içadas e vi-o partir, já sendo pouco mais do que ilusão na proa.  Caminhei, voltei a correr, aventurei-me nos patins, encontrei aquela família de cachorrinhos que alimentei quase durante um mês, vi o minguar de luas e os ventos a soprar à medida das marés.  Da Boca do Inferno à praia do Guincho. Tantos dias e tantos milagres. [Estrada do Guincho >> 13.07.2019]

Quando um sino toca numa aldeia

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Cheguei a Belver sob o sol do meio-dia e decidi deixar o carro logo na entrada da aldeia. Desci uma pequena rua até chegar ao Largo 5 de Outubro ou Luís de Camões, depende de que lado se está da igreja. Foi então que soou o sino, nesse badalar que me é tão conhecido. A mim e a quem vive numa aldeia. "Está a tocar a defunto" - diria a minha mãe se ali estivesse. Um repenicar que não é festivo e diferente  daquele toque das horas, do celebrar de um casamento ou de um baptizado.  Era o toque a rebate. Pareceu-me, mas foi muito curto. E eu estou numa aldeia que me é estranha e não deixo de pensar quem terá morrido, se novo ou velho, de doença ou subitamente.  Nas aldeias ainda nos importam os mortos. Talvez sinónimo de que a dignidade não tem um antes ou depois. Quando iniciei o trilho que me levaria à fonte da Fraga, o caminho passava pela casa mortuária. Na porta meia cerrada para que o calor não fustigasse o seu interior estava o obituário.  Três pessoas na rua a co

Olhos de sentir

Lembrei-me das palavras do meu pai que nunca foi um entusiasta de nada. Quase nada.  Das vezes que se cruzou nos corredores do hospital de S. João do Porto com os Doutores Palhaços, eles roubaram-lhe essa frieza de ver as coisas. E ele não deixou de repetir que ali estava o princípio de uma coisa boa. O meu pai já estava numa fase sem ilusões e minimizar a dor que vinha daí era maior proeza do que conseguir aquele olhar inocente e feliz das crianças ainda com todo um mundo por descobrir. Eles conseguiram.  Lembrei-me disto hoje, quando os Doutores Palhaços vieram ao escritório. E à medida que avançavam no corredor, cantando e espalhando essa magia que não esbarra apenas nas paredes dos hospitais eu senti que o meu pai em algum momento terá sido uma daquelas crianças que vêem estes Doutores com olhos de sentir. Sem preocupações em tirar fotos do momento, selfies, mas sempre com esse filtro real  activo da esperança. 

Até quando

Talvez tenha sido ontem , enquanto os via ali voltados para a igreja e para as pessoas que ficaram até que o último foguete fosse rebentado, que eu tenha percebido onde e como cimentei o valor da nostalgia.  Cantávamos "vou-me embora, vou partir mas tenho esperança", emprestado do cante Alentejano e percebi que todas as vezes que fiz "despedidas" com a banda, nas festas da terra, ficava esse fim com um travo a desconsolo.  Ao desejo profundo que no ano seguinte , os nossos e os rostos daqueles que por ali estavam voltassem a essa presença comum, firmando assim a certeza de estarmos todos vivos mais um ano. Aquele era um momento de consciencialização do poder irremediável da passagem do tempo. Triste e promissor, ao mesmo tempo.  E havemos de voltar todos com o tempo, já diz a canção, também. Mesmo quando temos de dizer adeus e findar as festas, até quando não sabemos. 

Lassie

Lembro-me de não ter desistido dela. De lhe empurrar aquela pasta de medicamento pela goela abaixo enquanto ela se contorcia, muito fraca e debilitada. Para depois fugir e refugiar-se nas ervas frescas do quintal onde ficava a arrefecer a sua febre. Foram dias nisso. Aquele olhar dela a pedir clemência. Lembro-me, também, do dia em que me mordeu na perna, talvez porque passei demasiado rápido e a assustei ou simplesmente porque viu nesse momento o ajuste de contas por aquilo que a fiz passar. Contámos dezoito anos, mas não estou certa de quantos foram. A Lassie desistiu na segunda-feira e ficará para sempre junto às ervas que um dia escolheu para se esconder.