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A mostrar mensagens de julho, 2020

Nas horas

Às vezes, nessas horas em que há um braço de ferro entre dois cansaços, ou quando o calor não diminui pela pequena fiestra da janela, ou quando já fiz todo o scroll de todo o lixo, todas as novidades, as vaidades, as purezas, ou até quando já tentei ler e reler as últimas páginas dos três livros que alternam a ordem debaixo do abajur, Às vezes, como agora, O corpo talvez desista para o insconsciente fazer a sua teia de contactos. Às vezes, como ontem, como agora, Eu descubro que essa inquietação apurada é o pressentimento.

[ carta III ]

Manuel deixou que os anos corressem no Rio, foi ficando, sem cartas remetidas da sua terra mas com amizades cariocas que lhe valeram nas horas mais cinzentas. Dos trezentos e cinquenta mil reis mensais  haveria de ter o que os campos não lhe deram até então. O que fizera nos primeiros meses depois da sua chegada são suposições divididas entre afazeres de tarefeiros para os portugueses já estabelecidos e as burocracias de legalização de um recém-chegado. Mas depois entregou-se ao trabalho para a firma de exportadores e só de lá saiu quando sentiu que a honra de um homem vale mais que o soldo pago. Durante sete anos servira aquela casa, ajudara a formar os moleques que vinham pedir trabalho e desistiam na semana seguinte, conheceu, cheirou e movimentou novas frutas e colheitas e foi aprimorando o jeito aos números, embora não dispensasse o velho lápis e o papel meio amarrotado no bolso da farda de trabalho. Um homem leal e correcto que não aguentou essa paraneia do dono da casa das "

[ carta II ]

Vicente está num boteco, junto ao Largo do Guimarães, em Santa Teresa, do outro lado do mundo, de máquina fotográfica vintage a tiracolo, enquanto espera pelo grupo de turistas com quem vai descer, até ao coração do Rio. Conhecera Sofia numa dessas tours quando ela viajara em medos pela primeira e, até ver única vez, para a sua cidade.  Os seus dias são como a incerteza das balas na favela. Ora sobe ao Morro dos Dois Irmãos, em rota de pobreza desvendada, ora ajuda o pai nos mil ofícios que as solicitações obrigam. Aquela colina de caixotes em tijolo bruto, que ao anoitecer é vista da baía, é um ponto de luzes, é desordem sem progresso. Não cabe, sequer, nas políticas de aberração firmadas de geração em geração. Mas é de lá o coração do Vicente, daquela luz de fim de tarde que ele capta no cimo do Vidigal e faz chegar ao mundo, com adenda de hastags. - Tinhas-me dito o ano de 1935, correcto?  - Sim. E aparentemente coincide com as pesquisas que eu tinha feito na internet.  Vi

[ carta I ]

Estava sozinha numa das mesas do café com longas cortinas de veludo grená. Pediu um chá e ainda hesitou ao apontar para o bolo de chocolate e noz, da farta boleira de imitação de cristal. Sofia carrega em olheiras o vazio e a ansiedade das últimas semanas. Não sabe como vai pagar a renda do pequeno anexo da ladeira dos jacarandás, nem todas as coisas que passaram de necessárias a supérfluas. Poderia existir, apenas.  Ver o mundo através de uma vitrina sem lembretes para as contas mensais, sem as viagens que os amigos programam e com quem nunca pode ir, sem os livros que ficam na lista de um futuro que não chega, os concertos que enchem salas onde nunca vai procurar um lugar de coxia. Aquele sentido de fracasso que nunca faz por ser breve.  Mas Sofia sabia disto quando, naquela coragem disfarçada de medo, se despediu do trabalho que tivera nos últimos quinze anos. Nesse dia, foi ela mesmo liberdade, disseram uns, loucura comentaram outros. Agora estava ali, de caderno de notas na mão, s