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A mostrar mensagens de janeiro, 2019

As pérolas

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[Opernhaus Zurich  | 26.01.2019] Havia um piso inferior onde podíamos deixar os casacos e, espantosamente, não se pagava por isso. Naquela enorme pedra polida do centro da sala colocámos todos os nossos casacos, gorros, luvas e tentamos que os jeans ou os vestidos de malha cardada passassem despercebidos entre saltos altos, vestidos clássicos, maquilhagens sóbrias e uma ou outra aberração. Como aquela senhora que decidiu mudar de sapatos, ali mesmo, no bengaleiro mas que, poderiam ser os mais caros da quinta avenida que não disfarçariam o mau gosto com que se vestira. Eram assim, os primeiros minutos da ópera em Zurique. Depois, cada uma foi para o seu lugar e fomos descobrindo porque é que os bilhetes foram tão baratos para aquilo que é a média de preços naquela cidade. Visibilidade reduzida, dirão muitos, eu diria a arte de ganhar um torcicolo, ou fazer amizades com a pessoa do lado, visto passar grande parte do tempo com a cabeça encostada no seu ombro. Subi

Nitidez

Era uma estrada pouco iluminada, tinha uma curva apertada junto às casas que ainda lá estão, depois descia muito. Havia um "souto" mais ou menos a meio, que é aquilo que chamávamos àquela entrada para uma bouça de mato. Depois passava um ribeiro mais abaixo e por isso fazia sempre mais frio aí. Mas já não tenho pormenores claros dessa pequena ribeira, muito embora  todas as vezes que fiz essa estrada a pé em direcção à igreja. Também não me lembro da escola primária, nem do cheiro da sala, nem do porquê de ter brigado com a Teresa nas escadas. Não me lembro do nome dos professores de todo o percurso escolar. Um ou dois apenas. Nem do nome das gémeas com quem partilhava o pódio no desporto escolar. Não me lembro da sede da banda antes das obras, nem das vezes que fiz o percurso a pé para as aulas de música ou de quantos éramos quando íamos na velha carrinha da junta de freguesia. Não me lembro de tantas coisas, em tão poucos anos. E tudo o que aqui escrevo é para reforç

Todas as coisas maravilhosas

O alçapão.  Esse momento em que o medo ou a certeza de que algo vai correr mal nos invade e ficamos ali, imóveis. Ou talvez não.  Ou sentimos o tal arrepio, não tão semelhante ao que ele sentia quando ouvia Elis Regina. Ou quando eu ouvi "a gente vai continuar" do Jorge Palma, pela voz crua do Ivo.  Talvez essa seja uma das coisas maravilhosas dessa lista. A música do Palma. Acrescentaria, o mar. Em tudo o que dele podemos sorver com os cinco sentidos. E um sexto, para o chorar.  Uma lista que começa em gelados e vai até um milhão de possibilidades. Eu diria que é infinita.  De criança até adulto, até se reconciliar com essa própria lista, já depois de perder quem nunca se interessou por ela e de amar quem mais vida deu à mesma.  Retive o número trezentos e vinte. Porque acabei o dia com uma discussão feia e pedi desculpa no final. Não será tanto o pedir perdão depois de uma zanga mas é o mais próximo daquilo que é reconciliador. Morte, suicídio, dor, tristeza,

O trezentos e dezanove

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Uma casa numa rua direita >> 11.01.2019 O 319 é numa rua que termina na pequena enseada onde atracam veleiros. Foi naquele recorte de escuridão em frente à areia, que me detive a pensar na única noite que passei ali e todas as outras em que fui ver se o barco estava bem.  Olhando bem, as cortinas desta casa lembram-me outros véus da existência. Mais ou menos divididos, cicatrizados, feridos, havemos de cobrir com algo que não deixe ver para o que ainda está mais esventrado.  Não o escondemos, porque as cortinas abrem, deixam passar a luz e conferem sobriedade no meio da confusão. 

O filme. E ele.

Roma, o filme. Uma sucessão de desgraças mas sempre com um pequeno detalhe de salvação. Entre o choro e o riso. A união e a separação. Em planos longos, bonitos e bem captados. Pedaços de história de um ano de um país, de uma família, de uma vida, que é, no fim de contas, a salvação de várias. Os aviões nos céus, aquela rua com a fanfarra a passar, o Borras (como eu gostaria de o ter resgatado! ), os livros que ficam e as estantes que vão, a Cleo que é heroína porque só ela encontra o equilíbrio quando salva os outros e se salva a si própria. E ele. Essa personagem universal sobre quem gostaria de ter escrito da última vez que fez as honras da minha rua. O amolador de facas, na sua autentencidade universal de figura que vem devolver algo bom depois da cena mais marcante do filme. Aquele assobio que é um cordão de ligação a todo e qualquer mundo que seja a nossa identidade.

Noção de tempo

Foi no dia trinta.  A senhora falava para o jornalista em frente à entrada do estabelecimento prisional de Lisboa. A cadeia, como sempre lhe chamei. Falava do seu filho e das queixas deste em relação às condições dentro da prisão, reflexo das greves dos guardas prisionais. Não demorariam as piadas e eu pensei que, noutra ocasião, teria eu própria ironizado com a situação. Mas lembrei-me de quem lá está que não me é anónimo. Lembrei-me daquele rasgo de infância, do dia em que fui à pesca na foz do rio como a única imagem que poderá sobrepôr-se ao desprezo, à vergonha e à tristeza. Lembrei-me de todos aqueles com quem trabalhei ligados a esse mundo de contraste, entre a culpa e a libertação. Lembrei-me do dia em que fui a uma reunião ao Linhó para ali jurar que não voltaria para conversas delirantes. Era dia trinta e eu já repetira vezes sem conta que 2 018 passou muito rápido. E lembrei-me dele, mais uma vez. E da contagem do tempo atrás de uma cela. O tempo num calendári

Para ti

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Santuário de Fátima >> 05.01.2019 Pedi-te para nos sentarmos ali, nas escadas voltadas para a cruz alta. Naquele recinto já entraram todos os choros, todos os medos, todas as alegrias, todos os males, todas as histórias. As nossas e as dos nossos que por ali passaram. Dos meus, pelo menos. Lembrei-me de outras praças. A de S. Pedro, em Roma, ou a praça em frente à Catedral de Santiago, no dia em que me deitei sobre a mochila a contemplá-la. Nunca pedi nada, em nenhuma delas, porque trago uma lição desde muito pequena, firmada num ato de contrição. Estamos ali. Oiço-te. Penso na tua história, na tua batalha. E carregas tanto, caramba! Mas em bom. Haverá ciência que explique, mas também há essa tua indomável natureza.  E é bom estar ali, contigo,  n esse "silêncio" de reconciliação, de agradecimento, de contemplação,  pese embora tudo o que tenha sido a tua vida nos últimos meses.  Fazêmo-lo com as nossas verdades interiores e os nossos credos. Que

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Quatro e vinte, em horas. Está uma noite fria e eu estou no varandim do casino. O vestido negro de veludo aperta-me. Poiso o copo naquele rebordo do pequeno querubim de acrílico e tiro os sapatos. Lá de dentro ouve-se a banda a tocar aquele soul de Philadelphia. Há risos abafados, foguetes que ainda estoiram lá longe. As horas avançam, em todas as festas desta noite que abre os dias todos que virão. Nada de novo nas mensagens, nos contactos. A palavra feliz, já gasta. Os pés vão gelando. O silêncio deste varandim que desejei ser para um tango. É então que se abre a porta e eu acordo desse casino de Bellagio.  No início da primeira madrugada do ano.