[ carta II ]

Vicente está num boteco, junto ao Largo do Guimarães, em Santa Teresa, do outro lado do mundo, de máquina fotográfica vintage a tiracolo, enquanto espera pelo grupo de turistas com quem vai descer, até ao coração do Rio. Conhecera Sofia numa dessas tours quando ela viajara em medos pela primeira e, até ver única vez, para a sua cidade. 
Os seus dias são como a incerteza das balas na favela. Ora sobe ao Morro dos Dois Irmãos, em rota de pobreza desvendada, ora ajuda o pai nos mil ofícios que as solicitações obrigam. Aquela colina de caixotes em tijolo bruto, que ao anoitecer é vista da baía, é um ponto de luzes, é desordem sem progresso. Não cabe, sequer, nas políticas de aberração firmadas de geração em geração. Mas é de lá o coração do Vicente, daquela luz de fim de tarde que ele capta no cimo do Vidigal e faz chegar ao mundo, com adenda de hastags.

- Tinhas-me dito o ano de 1935, correcto? 
- Sim. E aparentemente coincide com as pesquisas que eu tinha feito na internet. 

Vicente prometera enviar-lhe no dia seguinte a digitalização das páginas dos jornais que encontrara na Biblioteca Nacional. Havia referências em quase todos os periódicos disponíveis, mas no "Gazeta das Notícias", "Diário do Rio de Janeiro" e "A manhã" havia páginas inteiras sobre aquele outro dia na Gávea. Sofia não necessitava dos documentos, mas Vicente entusiasmara-se com a leitura das notícias de um outro tempo, outro Brasil. 

Manuel chegara ao Rio de Janeiro no dia 30 de Maio de 1926 e não lhe soubemos enjoos de alto mar. Se fosse hoje, Manuel teria saído do Rio, numa tentativa de chegar à Europa menos violenta, menos desigual mas onde a direita extremista vai cavalgando convenções e talvez venha a fazer mais estragos do que as balas do morro.
Do número 43 da Rua da Misericórdia saía todas as madrugadas para o Mercado, ali perto, onde começara como caixeiro e depois carregador. Recebia de todos os estados do Rio, Minas, S. Paulo e Rio Grande do Sul, todas as qualidades de frutas, verduras, aves e ovos. Habituado às lides do campo, Manuel não se vergou ao peso dos trabalhos em carretos e das mercadorias que movimentava na zona velha do Rio até que viessem aqueles dias em que vestia o chapéu de aba larga, fato de corte direito, camisa abetoada sem laço e sem despeito, e o velho relógio de bolso que lhe daria o deleite de horas a vaguear, uma outra bebida no boteco da Rua XIII onde, semanalmente, deixava o veículo parado, autorizasse a prefeitura. Eram os dias de folga.
Será que o avô fumava, perguntava, a si mesma, Sofia? Nunca vira em nenhuma das fotos o cigarro posto, mas com aquele ar de galã de cinema se o pusesse a fumar à entrada do boteco, não lhe desmerecia a saúde que teve até tarde. Exageradas as deambulações ainda o colocaria a trocar breves palavras com Carmen, também ela portuguesa, e que vivia a três ruas dali, no emaranhado da baixa. Se em 1939, Manuel lá estivesse, também ele cantaria "o que é que a baiana tem?".
Mas as cartas que Sofia guarda - uma datada de 1937 sem dúvidas intrometidas - e uma outra, na qual não se sabe se é de 1935 ou de um ano a mais, são muito antes disso. Poderia ela escrever apenas sobre o que aconteceu? Sobre as memórias do avó à cabeceira em olhos rasos de água e cego de vista mas nunca de amor?
A atentar à verdade, sabia Sofia que os impossíveis se concretizariam numa narrativa densa, melancólica e com uma pontinha de rancor, já que o motivo que o avô anunciava no pedido da carta de chamada, o resumiu o seu amigo por breves palavras - "enjoaste de Portugal".
Uma náusea da fome, dos invernos minhotos frios e compridos, dos vastos campos para lavrar em arado puxado a braços, das colheitas que não retiravam a míngua à mesa e dos animais de quem tinha tantas saudades como do sorriso da mãe.

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