[ carta I ]

Estava sozinha numa das mesas do café com longas cortinas de veludo grená. Pediu um chá e ainda hesitou ao apontar para o bolo de chocolate e noz, da farta boleira de imitação de cristal.
Sofia carrega em olheiras o vazio e a ansiedade das últimas semanas. Não sabe como vai pagar a renda do pequeno anexo da ladeira dos jacarandás, nem todas as coisas que passaram de necessárias a supérfluas. Poderia existir, apenas. 
Ver o mundo através de uma vitrina sem lembretes para as contas mensais, sem as viagens que os amigos programam e com quem nunca pode ir, sem os livros que ficam na lista de um futuro que não chega, os concertos que enchem salas onde nunca vai procurar um lugar de coxia. Aquele sentido de fracasso que nunca faz por ser breve. 
Mas Sofia sabia disto quando, naquela coragem disfarçada de medo, se despediu do trabalho que tivera nos últimos quinze anos. Nesse dia, foi ela mesmo liberdade, disseram uns, loucura comentaram outros.
Agora estava ali, de caderno de notas na mão, sem saber como gozar dessa ambiguidade, e a revisar todos os contactos que fizera nesse dia.
Sofia sabe que voltará a ter um horário e responsabilidades mas quer, acima de tudo, fazê-lo num ritmo normal, sem a ansiedade que lhe contrai o corpo, sem aquela sensação constante de que já está atrasada para algo que ainda nem sequer lhe foi pedido. 
Toma as suas notas, não sabe por onde começar essa história presa naquelas duas cartas de papel envelhecido, de onde ainda não conseguiu decifrar todo o contéudo, como se carregasse um segredo escrito em tinta permanente e a traço elegante, dividido por dois continentes e com tantos anos de distância. Numa das cartas está legível apenas um parágrafo, um relato breve e um pequeno quadrado desenhado toscamente onde o remetente dava conta das boas novas do nascimento de duas crianças. Sofia relembra o dia em que perguntara ao avô se tinha deixado filhos no Brasil. 

 Liga-lhe o Vicente. 

"Isto é janeiro e é Rio de Janeiro
janeiramente flor por todo lado.
Você já viu? Você já reparou?"

- Sim, Vicente? Como vais? Diz-me que conseguiste aquilo que falámos, diz-me que sim.

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