[ carta III ]

Manuel deixou que os anos corressem no Rio, foi ficando, sem cartas remetidas da sua terra mas com amizades cariocas que lhe valeram nas horas mais cinzentas. Dos trezentos e cinquenta mil reis mensais  haveria de ter o que os campos não lhe deram até então. O que fizera nos primeiros meses depois da sua chegada são suposições divididas entre afazeres de tarefeiros para os portugueses já estabelecidos e as burocracias de legalização de um recém-chegado. Mas depois entregou-se ao trabalho para a firma de exportadores e só de lá saiu quando sentiu que a honra de um homem vale mais que o soldo pago. Durante sete anos servira aquela casa, ajudara a formar os moleques que vinham pedir trabalho e desistiam na semana seguinte, conheceu, cheirou e movimentou novas frutas e colheitas e foi aprimorando o jeito aos números, embora não dispensasse o velho lápis e o papel meio amarrotado no bolso da farda de trabalho. Um homem leal e correcto que não aguentou essa paraneia do dono da casa das "Duas Nações" que num dia de janeiro afirmava que lhe faltava uma caixa ripada de cocos, vindos da Ilha Grande.
Ora Manuel poisava ali mesmo a sua carteira profissional para que o outro, arredando os alhos e as cebolas do balcão, lhe pusesse data de saída e nas observações "retirou-se por sua livre e espontânea vontade".
Depois desse episódio não voltaria a dar o mesmo documento do departamento do trabalho a assinar e embarcara até pisar de novo a rua Barão de Maracaná. Que ironia do destino, não é exagero escrevê-lo.
Se pensaria nela, já consumido nesse regresso, enquanto aprumava as folhas e a caneta para escrever aos que ficaram, Sofia não sabe.
Teresa do sorriso moreno e tímido, de poucas palavras, trabalhava no boteco na esquina com a Rua XIV do mercado a servir pastéis de carne, os preferidos de Manuel. Um dia ele chegou mais tarde,  convidou Teresa para um passeio e saíram pelo emaranhado do velho Rio, encurtando detalhes. Teresa ouviu as histórias sobre a ceifa, os dias da jorna com merendas, a vida na casa dos Caseiros desse Minho onde ela nunca chegaria a saber as horas vespertinas de orvalho denso, de musgo nos muros de pedra antigos a ladear as casas senhoriais, os retalhes dos campos verde e estivais, vivesse ela as estações todas para os admirar, as festas e romarias, anunciadas com morteiros no ar para logo se colocarem as colchas às janelas e passarem os santos e o santo pálio para as patrulhar. Isto era o que Manuel queria que ela visse nos seus olhos e nada do que o levara até ali e que ele próprio sacudiu no dia em desceu a escada metálica do barco e aprumou o fato amarfanhado de tantos dias no mar.

"(...)Saberás também que estiveram muito animadas as corridas da Gávea onde tinha portugueses correndo com carros que trouxeram de Portugal, tirando o segundo lugar e o primeiro foi o argentino Carú, que correu o ano passado. O Irineu Correia antes de completar a primeira volta caiu no rio, próximo do Hotel Leblon morrendo cinco minutos depois. Os portugueses tiraram 2º, 4º e 6º dizem e está confirmado que Carú só deu 24 voltas e só parou uma vez e o portugues parou 3 vezes calcula que mudou um pneu em 6 minutos e a diferença foi de segundos, disseram já declarado que para o ano cá estão de novo (...)" 

O parágrafo visível de uma das cartas coincide em história com os recortes de jornal enviados por Vicente, datados de junho de 1935.
Manuel recebia a notícia do que animava em desgraça o seu velho Rio, em parágrafo longo e detalhista e de um modo breve, misterioso e em post scriptum não declarado:

"tua e minha _______ deu à luz dia 15 dois meninos".

Manuel não vira as corridas da Gávea no ano seguinte mas voltara a tentar cruzar o Atlântico. Esse desejo terá sido enviado ao amigo, onze anos volvidos sobre o dia em que chegara ao Rio. 
De resposta, recebeu promessa do envio da carta de chamada que ficou, tanto quanto Sofia sabe, apenas por essa intenção.
Enquanto beberica o chá, Sofia pensa nas razões que ela própria tem para pedir uma carta de chamada, mas lamenta, acima de tudo que o avô Manuel não tenha regressado ao Rio porque, embora o silêncio seja uma resposta, ela vai escrever sobre os filhos que o esperavam.
Nas histórias não existem verdades.







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