O cavalo com o fogo nos olhos
Acordei num grito. O cavalo empalhado estava no quarto e tinha o fogo da Serra nos olhos.
Aqueles olhos vidrados que vi, felizmente, já depois de ter jantado e dos copos do Vicentino branco.
A Serra estava a arder e nós tínhamos estado a falar da memória. Saímos rua fora, pulsando de nervoso ao ler as escassas notícias dessa hora.
Falávamos de exercitar a memória, da importância de observar os detalhes, como as penas de pavão do vaso que quase deitei abaixo com a pressa de vestir o casaco. Ou os sapatos de cor bege do rapaz que jantava sozinho e que, por acaso ou destino, era a terceira vez que eu via, nesta cidade, a que eu chamo de grande. Ou aquela tinta da parede a imitar rachas profundas, sem o ser, na verdade, ou assim pensámos que fosse.
E eu só me lembrava dessa camada de nevoeiro nas copas das árvores, do cheiro de Monserrate, das vezes que fui ao jardim do México passando pelo Roseiral para repetir vezes sem conta que aquele era o lugar mais bonito do mundo. Das vezes que atravessei as tapadas, me baixei para entrar nas celas dos Capuchos ou subi a rampa da Pena a pensar que bom seria a sombra da feteira da Rainha. Seria possível que nós, com tantas memórias boas e más dessa Serra, ali estivéssemos todas para lembrar um dia mais tarde esta noite, como aqueles outros dias em que o fogo se abeirou dos parques ou as tempestades derrubaram milhares de árvores?
Ou deixaremos que milhões de conexões se percam, filtradas pela razão e deixando cair pedaços tão ou nada importantes, destruindo o que aconteceu , como se de uma obra de Banksy se tratasse? Ou encarregar-se-á a história, de nos lembrar desta noite como a véspera do dia em que o Brasil assinou uma sentença de morte?
O cavalo estava ali, com o fogo da Serra nos olhos. Mas não era unicórnio.
in Restaurante Optimista | Rua da Boavista, 86 Lisboa
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