Nitidez

Era uma estrada pouco iluminada, tinha uma curva apertada junto às casas que ainda lá estão, depois descia muito. Havia um "souto" mais ou menos a meio, que é aquilo que chamávamos àquela entrada para uma bouça de mato. Depois passava um ribeiro mais abaixo e por isso fazia sempre mais frio aí. Mas já não tenho pormenores claros dessa pequena ribeira, muito embora  todas as vezes que fiz essa estrada a pé em direcção à igreja.
Também não me lembro da escola primária, nem do cheiro da sala, nem do porquê de ter brigado com a Teresa nas escadas. Não me lembro do nome dos professores de todo o percurso escolar. Um ou dois apenas. Nem do nome das gémeas com quem partilhava o pódio no desporto escolar.
Não me lembro da sede da banda antes das obras, nem das vezes que fiz o percurso a pé para as aulas de música ou de quantos éramos quando íamos na velha carrinha da junta de freguesia.
Não me lembro de tantas coisas, em tão poucos anos. E tudo o que aqui escrevo é para reforçar que não sei como era algum detalhe físico, de cores, de aspecto, de cheiro e que ligação tinham à minha existência. Ou que pessoas se perderam e ficaram para trás. E mesmo com uma fotografia nas mãos eu não vou conseguir dizer os nomes daqueles que lá estão.
Mas em toda este esvaziamento de mim, há uma nitidez que me faz acreditar que o melhor se salvou. Consigo lembrar-me da voz do meu avô. E consigo vê-lo sentado na velha cadeira no meio do coberto enquanto apanhava sol nas pernas. Calças cinza e uma camisola castanha. E pantufas. E acabo sempre por me preocupar menos com tudo o resto que já não consigo resgatar.

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