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A mostrar mensagens de dezembro, 2019

Terra que vai, mar que vem

Pensava eu enquanto olhava aquele recorte dunar, o mar crespo e os avanços na linha costeira. Desci o fieiro, a que chamávamos "fieiro alto", de tão grande que era, e voltei ao caminho ladeado de canaviais. De volta à estrada, tentei correr mas mais acima abrandei porque os vi na berma. Ele, homem curvado pela idade e pelo recobro de uma queda com costelas partidas, e a pequena vitelinha, sangrando do cordão que a expurgou para a vida. O rasto de ervas tombadas denunciaram que a viagem já ia longa, naqueles moldes. Ele tentando arrastá-la e ela tentando erguer-se nas patinhas curvadas, para evitar a corda em laço que a apertava. Foi então que ouvi o meu avô, ali de mãos no cajado, a dizer "a Rita já nasceu". Para logo a seguir entrarmos no estábulo, a luz a denunciar aquele fumo de calor que se levantava do estrume e do estado de natividade puro. Foi esse cheiro que senti quando me baixei, passei os braços pelo corpo da vitelinha e num esforço atroz a ajudei...

Começaria assim

Naquele fim de tarde ele era um vazio mais fundo que um oceano. Nem o tilintar dos mastros junto à doca o arrancavam daquele turpor em que seguia, ainda a desfazer o nó da gravata e de olhos postos no chão. Acabaria por cair a noite e ele por ali, sem arrancar ao corpo um cansaço que o fizesse parar. Foi então que inclinou a cabeça para acender um cigarro e viu o pequeno letreiro, no oleado do barco. Um número de telefone, apenas. Enquanto o passava para um pequeno papel não pensou nesse exacto momento, que barco era aquele, quantas milhas já percorrera e que vagas o poderiam libertar de uma ruína lenta.  Estava sem bateria no telemóvel mas algo lhe dizia para não esperar para o dia seguinte. Caminhou em direcção à avenida principal e apanhou um táxi em direcção ao hotel. Sentou-se no escuro do quarto, marcou o número e esperou.  Nada. Voltou a chamar. Alguém atende: -Boa noite, fala o Manuel.

30.11.2019

Cheira a castanhas assadas. Rua acima, rua abaixo em desfile de encontrões e  o que já vemos sem olhar, aquilo que nunca iremos ver e os que se escondem para não ser vistos. A música mistura - se e obriga aos decretos dos palcos de calçada. Ora uns, ora outros, em amplificações rascas para os que param em redor com os olhos androidianos apontados. Nunca veremos de outro modo, só assim, e  enquanto filmamos somos roubados. Rua acima, rua abaixo. O Chiado num retrato.

O Jei, ontem

O Jei vai sobre a pressão do meu corpo entre o banco dele e o banco do passageiro, enquanto vejo a hora de chegada ao destino no gps do telemóvel. Diz-me da má hora, do trânsito e eu já sei que estamos nesse vulgar momento em que uma cidade pode parar para entrar numa ponte. O Jei vai falando, nesse sotaque que me lembra o nordestino. Conta-me da reserva natural junto da sua terra natal, das mudanças que sentiu quando se mudou há quatro anos e pergunta-me se algum dia visitei o Brasil. E então a minha ansiedade morre naquele cheiro de chuva caindo sobre o verde da ilha grande. Morre na primeira viagem de táxi em que sigo aquele calçadão, na ousadia de subir ao morro e comer o frango frito naquela esplanada em pleno coração do Vidigal. O Jei sabe que eu tenho pressa. Não a mesma pressa que ele teria em quatro horas no trânsito de S. Paulo, para a mesma distância. O Jei faz-me perguntas e sabe que até eu chegar, não se trata de um atraso, mas da minha capacidade para relativi...