janela #7
Já o tinha visto na fila para o supermercado há uns dias atrás, nessa nova rotina das nossas vidas. Impaciente, ia e vinha tentanto manter as distâncias dos demais. Alto, cabelos longos, grisalhos e apanhados, com um ar de artista e de vida inconformada.
Ontem, deixei o lixo e fui pelo descampado em direcção à Travessa das Azinhagas e depois pela Rua Direita.
A rua vazia e o largo sem a criançada a correr em desvario parecem um lugar fantasma.
Na porta do dezassete há um bilhete que diz "se surgirem dúvidas médicas e de saúde, pode perguntar no número 24." Mais à frente na tasca, o bilhete tem erros ortográficos e o mesmo ar carcomido que o anterior. Na porta da capelinha escreveu-se "que deus nos livre desta peste". A todos o sol já comeu o vigor das letras no papel, mas talvez ali permaneça a tristeza de quem os escreveu.
As obras prossegem e o casario cobre-se de um fino manto de pó. Ao fundo, na casa do Cesário, vejo a mesma figura do homem do supermercado. As portas velhas do casario ao abandono, estão entreabertas e vê-se um amontoado de tralhas, livros, telas. Por uma nesga de porta imaginei que ali repouse algum espólio do poeta. Ou talvez o acumular de tralha daquele que, aparentemente, vive no prédio sem condições, de janelas estilhaçadas.
Quem é aquele homem afinal, a quem não posso perguntar se é mesmo pintor como o imagino desde o primeiro dia em que o vi?
A dois passos à frente paro e aí sim:
- azul quê?
- Acho que é celeste.
[ Lisboa, 28.03.2020 ]
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