Crusoé, revisitado


Naquela manhã, dois dias depois da tempestade, Crusoé descera à orla da ilha, sozinho, para colher fruta das árvores. À medida que se ia embrenhando na vegetação percebia que os ventos tinham sido mais fortes do que os fizera. Os fetos derrubados, as grandes clareiras abertas à mercê do céu azul e sem réstea do negrume que foram as últimas horas. 
Quantas tinham sido as tempestades ao longo desses últimos anos? Deteve-se com aquele fruto espinhoso e verde, de polpa doce, na mão, a pensar que em cada uma dessas noites que os céus rasgaram fogo se sentiu mais próximo de algo novo que estava por vir. Como uma renovação anunciada, sem que fosse certo que estivesse vivo no dia seguinte. Já não tinha medo dessa natureza enfurecida que roubava o silêncio daquela solidão que escolhera. 
Absorto nos seus pensamentos não se apercebeu daquele restolhar, mais abaixo já onde a areia escalda e se acaba o verde.
Assustou-se com aquele corpo moreno, esguio, meio nu. Crusoé aproximou-se, ainda o coração acelerado pelo que via, ou talvez pelas memórias desse dia em que percebeu que não estava sozinho naquela ilha. Aquele corpo não era um animal fugidio,  embora aqueles olhos verdes que o fitavam lembrassem uma serpente. A cabeça da mulher tombou na areia e Crusoé viu-lhe um rasgão na pele que sangrava.
-Quem és tu? - perguntou Crusoé.
Um esgar de dor apenas.
-Chegaste em algum barco? - insistiu Crusoé enquanto se aproximava daquela mulher.
O rasto de folhas tombadas denunciavam por onde ela se tinha arrastado, vinda do lado oposto da ilha. Tinha vários cortes no corpo, uns mais profundos que outros, vestia apenas o resto de um vestido de linho branco.
Em tremores espaçados tentava dizer algo que não se entendia. Então, Crusoé lembrou-se de subir o tronco da palmeira caída que lhe dava acesso a um pequeno morro de onde tinha visibilidade para lá da pequena praia onde estava. Procurava em vão um barco ao largo que confirmasse a razão daquela mulher estar ali.Mas o horizonte era azul vivo sobre aqueles pequenos pontos cintilantes de oceano.
Desceu junto da mulher novamente que continuava com o rosto meio enterrado na areia, sem sinais de querer ganhar forças para mais.
Aquele rosto lembrava alguém a Crusoé, desviou-lhes os cabelos, tirou o cantil que carregava à cintura, tentou dar-lhe água a beber. Ela moveu os lábios devagar enquanto tentava dizer algo, numa voz sumida e rouca.
-Susan.


[ no dia 25 abril de 1719 "Robinson Crusoé" foi publicado. Este é apenas um exercício mal conseguido, escrito algures em 2019, por mim, para uma segunda versão de uma história a partir de "Crusoé ]

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