Memórias do Sr. Joaquim

Passaram doze ou treze anos. Eu vivia numa casa húmida, não tinha vizinhos de prédio, com umas escadas que me faziam desistir de carregar qualquer coisa, onde nem o bonsai se habituara, acabando por despir todas as suas pequenas folhas, tendo sido já tarde demais para o salvar, quando dali decidi sair.

Em Maio, por altura das peregrinações a Fátima, o senhorio abria o espaço inferior do prédio, que nunca terá cumprido as suas funções de espaço comercial, e recebia peregrinos. Pela proximidade da N1, em várias semanas muitos eram os que se deitavam em sacos-cama ou colchões improvisados e descansavam, ligavam às famílias, curavam as feridas, embora muitas delas nunca tenham parado de sangrar. 

Por esses dias, e enquanto ajudava as pessoas a acomodarem-se, apareceu o Sr. Joaquim, mais de sessenta anos feitos, fanfarrão nas suas primeiras palavras, o corpo em mazelas visíveis e tudo o resto um misto de comédia e tragédia. Quando o ajudei a sentar-se e a tirar os ténis e ele fez-se em silêncio com um soluçar de homem perdido, não soube o que fazer. Tremiam-me as mãos porque o estado dos pés eram uma massa de ligaduras em sangue. Dei-lhe um copo de água com açucar, medicamento universal de todas as horas difíceis e que nunca nos sabe bem. Também ao Sr. Joaquim não remediava o seu mal e aquela dor maior, com a qual saiu de casa bem lá no Norte e com a qual regressaria findo o treze de Maio. Uma filha doente, com cancro, todas as esperanças esgotadas em tratamentos e viagens para o IPO, uma mulher já meia delicerada por essa dor da perda antecipada e mergulhada numa apatia com a qual o Sr. Joaquim não sabia lidar. 

Dizia-me que não ia pedir nada à "Senhora" mas oferecer o seu esforço, o sacrifício e a oração daqueles dias. Para que se fizesse, ele mesmo, mais leve no que viria depois. O Senhor Joaquim não tinha dúvidas do que viria a seguir, não era um homem de enganos, acreditava nos médicos que tratavam a sua filha, mas precisou de fazer aquele caminho e de teimar com os operacionais da Cruz Vermelha de que sairia na manhã seguinte. 

- É só mais um dia - dizia ele.

E saiu. 

As demonstrações de fé irão continuar a existir, seja este um ano zero, ou de viragem numa nova forma de vivência, socialização e expressão daquilo que somos. Eu prefiro continuar a falar de fé de um outro modo, não de religiões, credos, deuses ou santos. Falo desse vergar à pequenez do que somos e tentar aliviar um caminho, acreditar em algo que faça arrepiar decisões ou então avançar destemidos. Não falo em adoração de santos, espaços de culto, rituais ou cerimónias religiosas. Quando temos fé, temo-la quer estejamos numa igreja de pedra fria e talha dourada ou de pés descalços num templo hindu. 

Nunca soube se o Sr. Joaquim chegara ao destino, nem o que foi feito dele nos meses e anos que se seguiram. Aliás, talvez ele nem precisasse de chegar. Era só mais um dia. Essa era a sua fé.


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