Ougadamente

 Saímos da estrada principal e metemos pelo caminho ladeado por amieiros que terminava numa rua estreita com poucas casas. Numa delas, desfazia-se um ciclo, a arrancar videiras à terra e, mesmo que isso possa representar mudança e renovação, para mim, sempre que se arranca uma vinha é sinal de tristeza, de fim de uma era. 

E enquanto subíamos na rampa de madeira de acesso ao restaurante passou o Gary Cooper de bicicleta, sem chapéu de western, mas com aquele ar cinematográfico que parecia abrir o quadro que estava por vir. Trazia duas romãs na mão e entregou-as a alguém que terá saído pelas traseiras do espaço. Não sabemos se por zelo, convenieência ou pedido especial.

E depois, aguardámos na porta, filtrando aquele certo desalinho, as caixas de vinho empilhadas, as anunciadas noites de cultura ainda afixadas nos papéis, a ementa escrita a giz, as floreiras decadentes, a esplanada de onde se viam os chorões pendentes para as águas paradas da lagoa. 

E aguardámos, já numa interrogação de que se valeria a pena, se seriam verdade as "reviews" feitas online ao espaço, à comida e ao serviço, como se disso dependesse uma certa ordem terrena.

E eu já estava com a memória no dia em que me embrenhei na selva da Ilha Grande para ser recebida por um freak, num Lodge que tinha destaque num guia turístico mas que o tempo fez questão de destruir o que as sucessivas edições não corrigiram.

E quando ele cruzou o avental sujo sobre as calças de linho, nenhuma outra ideia me passou que pudesse coincidir com a experiência do que foi ouvi-lo falar da crosta de bacacalhau preparada em fio de azeite da melhor colheita do ano passado, da carne maturada ou do prego que alterado o nome pode ser algo bem mais especial. E único, como aquela carta de vinhos escrita à mão, em sebenta antiga, com apontamentos, rabiscos e denúncias de uma alma livre, inquieta e espirituosa. 

E se todos aqueles que esperam horas, sem aborrecimentos é porque há qualquer coisa de secreto, tão puro e singular como aquela personagem que, para além de gerir um restaurante é, seguramente, uma espécie de alquimista.

Passou-se uma semana e de futuro, sempre que for a um restaurante, lembrar-me-ei se poderá ser algo "ougadamente" parecido.

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